Um atravessamento em forma de poesia

É minha contribuição hj, palavras que me afetam sempre que leio, e que encontro varias Marias nela, inclusive a minha.
Um presente de Luciane Nascimento!

 

NÃO EXISTE SENHORA PRETA SEM HISTÓRIA TRISTE PRA CONTAR

 

“Não existe senhora preta sem história triste pra contar.
É por isso que quando passa ao lado de uma
Nas ruas movimentadas da avenida Joaquim Leite
A calçada ali da rodoviária em diante
Onde se cruzam vidas dos bairros adjacentes, caminhando lentas ou apressadas,
Todas
Essas
Vidas
À minha frente

 

Exatamente quando quero passar
sempre com pressa
Ceifa a minha paz o momento
Que a vista alcança de repente
Uma senhora preta caminhando mais lenta
que eu.
Quantas vezes já parei pra refletir
Que os seus passos são pesados, quase sempre
Esparramados os dedos na sandália sempre gasta
De unhas grossas e esmaltes por tirar.
Por onde passaram esses pés?
Quanta sola já foi gasta
Quanto a pé já não andou
Quanto aperto não passaram esses pés
Pra que o luxo dos sapatos novos fosse dado
somente aos tantos filhos
E quantos, seus filhos?
Qual deles ainda lhe faz a gentileza de cortar as suas unhas,
Quanto pescoço e pé de galinha comeu, fingindo que gosta
Pra deixar as outras partes do ensopado a quem mais ama.

Ninguém gosta de pescoço de galinha, senhora.
E enquanto caminha no sol
Por ser cor sua pele sua, e a toalha de mão
arrasta naquela testa
O que pensa aquela testa?
Quanto de pensamento não esquentou aquela testa
Além do sol
Esse suor que toca salgado a raiz do cabelo na testa
Quem ainda te alisa o cabelo?
Quem ainda te obriga a fazer isso? Quanta ordem esse cabelo recebeu
Quanto tempo de sua vida ali, em frente ao espelho, infeliz com ele.
Onde deita essa cabeça, senhora? E quando deita, qual o teto que enxerga
Até adormecer?
O que sonhou essa cabeça?
Quanto inteligência nessa cabeça, a do cozinhar, do costurar,
A do resolver tudo por conta própria
Foi substituída pela vergonha
do não saber como ensinam nas escolas
do não saber falar. Quanta timidez, senhora, por não saber falar
Quanta vergonha sob essa testa que a toalha
de mão arrasta
Foi obrigada a passar
Eu vejo uma dor que é suada e seca, como se,
mesmo em chorando, essa senhora preta
nunca tivesse sentido pena de si, do jeito que
a gente chora. Quanta pena de mim eu já
senti por perder um ônibus na minha pressa.

Quanta pena de si ela deixou se ter por não
ter podido mesmo se dar a esse luxo.
Quanto choro silencioso e seco já chorou nesses seus
70, 60, 68 anos, 80.
Quanta simplicidade contemplou como
se ouro fosse
Quanta alegria te deu a laje pronta
A festa que a filha foi se sandália nova
Porque a sua já tão gasta ainda aguenta
esse passo firme
Em direção a quem caminham esses pés?
Qual o seu desejo pra hoje, senhora?
É que seus filhos sejam felizes?
É que tenha lugar na condução?
Qual o seu lugar, senhora? Explica
Porque me entristece a injustiça dos que não
te enxergam aqui passando, majestosa.
Onde puseram seu trono, senhora?
E de repente já terminei aquela rua e aquela
senhora já caminhou pra não sei onde
E aquela energia pendente como rastro no
caminho
me faz indagar coisas como:

Quem cortará minhas unhas quando eu for
senhora?

Quanto ainda caminharei até encontrar meu
trono?

 

Poesia do livro de Luciane Nascimento – Tudo nela é de se amar

 

✍🏾 #asmariasdacasa
Contribuição de Fabiana Luiz,
psicóloga do nosso corpo clínico.