Jogando nosso corpo no mundo

Ouvindo e trabalhando com mulheres, surgem diversas reflexões sobre as sensações e experiências de estarmos no mundo e a forma como nos expressamos. Desde a infância, nós meninas, futuras mulheres, corremos o risco de vivenciar situações tais como o assédio, a sexualização dos nossos corpos, a cobrança de seguirmos determinados padrões corporais, as violações do nosso corpo, que podem ocorrer de diversas formas, além das experiências do racismo, se formos mulheres negras, da gordofobia, se formos mulheres gordas ou fora de um padrão estético hegemônico. 

Pensar essas experiências que nos atravessam desde muito novas, contribuem para a construção de nossa subjetividade e identidade, além de influenciar no desenvolvimento da nossa sexualidade. Podemos somar a essas reflexões o conceito de Interseccionalidade, ao se considerar os fatores de raça, gênero e classe como balizadores da estrutura da nossa sociedade e das experiências de mulheres e homens e suas interfaces. Para exemplificar melhor, pensemos na interseccionalidade como uma encruzilhada, onde podem se conectar elementos que compõem não só nossa corporeidade, mas também os elementos que nos estruturam e nos localizam na sociedade. Nesse sentido, pensemos nas diferenças de uma mulher pobre, negra, ou trans ou lésbica, ou gorda, ou todas estas características somadas. É possível cogitar, diante as diferentes experiências de nossos corpos no mundo, que tantos elementos somados afetem de forma muito peculiar, crucial, talvez cruel e violenta, essa e tantas outras mulheres diante dessa chamada encruzilhada. 

Encontramos o mundo, a rua, o espaço público como campo de batalha cotidiano de nossa sobrevivência, de escaparmos do olhar, da palavra que ofende, do assédio que agride, das práticas incitadas na sociedade que nos geram insegurança e nos violentam. Muitas vezes nos indagamos: “O que querem de mim?” E o que será que querem de nós mulheres? O que esperam de nós? E em que medida respondemos ou não a essas demandas, esses desejos de lobo faminto à espreita, na esquina ou no vão de nossas casas. Pensarmos nossa condição também diz respeito a conseguirmos construir novas possiblidades de vida e liberdade para cada uma de nós; se “meu corpo é a única coisa que possuo”, como garantir que nem dele eu me desfaça, eu me perca, eu continue a sobreviver e viver, jogando meu corpo no mundo na busca incessante por alegria e liberdade, por quem desejamos ser e somos.

Assim, surgem questões: que estratégias buscar para sobreviver nesse campo da batalha? A que ou a quem recorremos? Como nos impomos? Quais recursos utilizamos? Como nos fortalecemos ou nos empoderamos? De que forma escapamos dos lobos, ao mesmo tempo em que conseguimos manter nossa alegria e desejo de viver enquanto mulheres numa sociedade tão dura conosco? Talvez não seja fácil nem simples respondermos a essas indagações. Elas surgem principalmente para nos dar direcionamento e provocarmos nossas vozes interiores e exteriores, buscando encontrar ou mesmo reparar nas nossas atitudes de autodefesa e resistência. Se observe e se escute: o que para você não é mais tolerável? Onde não cabe mais abaixar a cabeça e se resignar? Por onde você quer andar e aprendeu que não poderia? Que novos caminhos você quer traçar? 

Se uma mulher sofre em algum lugar no mundo, sofremos todas. Para não sofrer sozinha, vale resgatarmos a palavra quilombo e utilizá-la como verbo: nos AQUILOMBEMOS! Nossos corpos e nossas vidas merecem a dignidade da liberdade.

 

✍🏾. #AsMariasDaCasa
Contribuição de Daphne Soares
Psicóloga do corpo clínico da Casa de Maria