O luto de uma psicoterapeuta ou Carta para um baobá!

Em 28 de dezembro de 2020 entrei para as estatísticas da pandemia da covid-19 que assolou o mundo: perdi a minha amada mãe! 

Eu a chamava, nos últimos tempos, de “meu baobá”. Assim como essa milenar árvore, símbolo africano, que carrega em si uma história de força e resistência, de alimento e espiritualidade, também é minha mãe, uma combatente aguerrida, potente, com quem aprendi tantos valores e em quem me reconheci como mulher preta. Eu poderia contar várias outras curiosidades sobre o baobá, que me lembra tanto minha mãe. Mas essas curiosidades vocês encontram no Google. Já sobre a minha mãe… 

Filha de Maria Noêmia e Pedro Floriano, ambos mineiros. Sei que minha avó descendia de linhagem indígena e meu avô era neto de pessoa escravizada que foi alforriada. Mais do que isso, não consigo contar. O tão conhecido apagamento da história dos nossos ancestrais é sintoma por aqui também. Mamãe pertence a uma prole de 9 mulheres e 6 homens, sendo que destes, 6, contando ela, já partiram para o Orum.

Trabalhou como empregada doméstica desde os 11 anos, para ajudar minha avó a criar seus irmãos mais novos. Por isso, teve sua vida escolar interrompida. Seu sonho sempre foi ter se graduado. Queria ter cursado Letras. Diante da impossibilidade para si, sedimentou oportunidades para suas duas filhas e assim pude chegar até aqui, como psicóloga. Foi mamãe quem abriu caminhos para que me fosse possível desejar e escolher. Ela teve como lema de sua vida a minha formação educacional e de minha irmã. Desde pequena, fui incentivada por ela a ler, escrever e hoje, enquanto redijo essas palavras, em uma tentativa de elucidar o quão avassaladora tem sido a sua ausência material em minha vida, também penso na potência da semente que ela plantou em mim, seu fruto. 

Sou quem sou por ser filha de Penha e Claudovir, mas, sobretudo, sou quem sou porque o baobá que me deu origem sonhou alto e mirou as nuvens. Mamãe, enquanto habitou seu corpo material, foi de uma generosidade gigante e, assim como o baobá, que armazena água em seu interior, para depois ofertar à aridez, ela avolumou em si e desaguou em nós, minha irmã e eu. Mamãe é uma das mais de 600 mil vidas ceifadas por essa pandemia. Quando ela partiu, entramos em um mar de tristeza, porque não a temos mais entre nós. Mamãe não venceu a covid-19, mas os reais perdedores somos nós, papai, minha irmã e eu! 

O luto é um processo tenso e extremamente dolorido. O luto da covid-19, ainda mais. Não pudemos ver mamãe. Não pudemos nos despedir. A entregamos viva no hospital. De volta, recebemos um caixão lacrado, com uma etiqueta com seu nome e seus pertences em uma sacola. Só nos restou a missão de retirá-la de todos os nossos planos futuros, das conversas que não mais teremos, dos abraços que não mais daremos, das viagens que não mais faremos. 

Nesse tempo todo de trajetória clínica, foi a primeira vez que experimentei tamanha falta e dor. No começo, nos primeiros dias, achei que não suportaria. Aos poucos, fui retomando a rotina e o trabalho com as pessoas que atendo. Curiosamente, eu estava acompanhando duas pessoas que estavam passando pela mesma situação: a perda dos pais. Quando voltei a ouvi-las, minha escuta já era outra. Agora, eu já sabia de que dor elas estavam relatando. E foi essa retomada, devagar e cuidadosa, que me tirou do estado desesperador, pro estado possível de convívio com a dor… sim, é verdade mesmo, a vida continua… 

Eu não sou mais a mesma. Hoje me vejo uma pessoa menos feliz, fato! Mas foi nesse caminho, de lidar com a dor, de não me furtar do sofrimento que a morte de minha mãezinha causou, que descobri várias coisas sobre mim, que me permiti viver a totalidade de minha fragilidade, mas também experienciei a força de minha potencialidade. Muita coisa mudou por aqui, mas a principal mudança é que eu deixei de somente pensar que uma parte de mim morreu com mamãe. Hoje eu compreendo, valorizo e agradeço que uma parte importante dela vive, de um jeito lindo e pulsante, dentro de mim. Afinal, eu sou fruto do “meu baobá”! 

Penha Aparecida Cardoso da Silva, Presente!  

✍🏾 #AsMariasdaCasa
Contribuição de Daniela Cardoso,
psicóloga do nosso Corpo Clínico.